O dia que Augusto acordou sem os sentidos

Da Redação ·
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Esse “sentido” Augusto foi incapaz de recuperar
fonte: Pixabay
Esse “sentido” Augusto foi incapaz de recuperar
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Era uma quarta-feira como todas as outras - poderia ter sido em uma terça, mas aconteceu na quarta -. Augusto chegara em seu trabalho como de costume às 7h da manhã, iniciara seus ofícios, quando de repente perdeu todos os seus sentidos. Assim dizendo, pode imaginar que ele caiu no chão desmaiado, mas pelo contrário, estava lúcido – e talvez essa tenha sido a primeira vez que isso ocorrera.

Sem a visão, audição, olfato, tato e paladar, Augusto não mais sentia o mundo a sua volta, era como se estivesse preso em uma caverna escura que ele chamava de mente. Ele não podia conceber as cores, pois percebeu que realmente nunca havia enxergado além dos olhos, nem sabia o som dos ditos pássaros que cantavam a sua janela, ele nunca estava lá para ouvi-los. Por um instante sentiu medo, um grito horrorizado não saiu de sua garganta. Seu corpo, ainda que não estivesse imobilizado, era incapaz de percorrer o velho corredor, não sentia o chão sob seus pés, não via as paredes, não ouvia os passos e não havia cheiro algum. Por um instante, Augusto era somente uma voz silenciosa e silenciada dentro de si, e foi a primeira vez que pode sentir de fato o que de si existe no mundo. Minutos depois recobrou os sentidos, foi ajudado por colegas e pode voltar para o mundo a sua volta, velho conhecido e até então pouco explorado.

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Ao recobrar os sentidos, Augusto começou a questionar não a sua existência nesse mundo que entendeu desconhecer, mas qual o sentido de sua própria existência. Esse “sentido” Augusto foi incapaz de recuperar, pois diferente da visão ou audição, o sentido da vida não se conecta ao mundo sem que faça sentido por dentro. Você pode ver e não enxergar o mundo, mas é incapaz de viver plenamente se não souber o sentido da própria existência. Existir não é o mesmo que viver, agora ele sabia disso.

Ele era o melhor profissional em sua área, mas a que custo? Quem realmente o ajudou quando ele estava ali sem nenhum sentido? Augusto percebeu que não dava conta de seu dia todos os dias. Era sempre um prazo atrasado ou uma demanda para fazer. Era sempre para ontem e hoje era apenas o intervalo entre o amanhã que nunca chegava. Ele percebeu que a data que colocava em seus documentos não condizia com sua percepção da vida. Quando foi que 2015 se tornou 2025? Quando foi que abril vem depois de agosto? Em que momento paramos de ver o nascer e o pôr do sol como fenômenos da natureza repletos de beleza, passando a entende-los como mais um prazo, um sinal, um lembrete da brevidade da vida que se vive entre paredes geladas que não nos abrigam?

Augusto até pensou em fazer planos para dar sentido a existência futura, quem sabe se aposentar aos 50 para aproveitar o que lhe restasse da vida? Viveria os próximos 12 ou 11 anos em busca de viver outros 15 ou 30. Se não há sentido no agora, que haja no futuro que ainda não existe e trará seus próprios desafios. Ele questionou seu emprego, seu cotidiano, seu ostracismo social em um mundo que se quer sempre feliz em propagandas e belos em filtros de redes sociais. Para quê existimos se não há sentido nesse existir? Essa dúvida o incomodava, pois pensava fazer menos do que achava que faria e se esforça o dobro do que desejava para tal. Qual o sentido disso tudo? Qual o objetivo?

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Foi então que Augusto ao conversar com um amigo entendeu algo que nem o próprio amigo sabia até então: talvez o sentido da vida seja simplesmente viver. Não pense que esse discurso é reducionista a ponto de aceitar o mundo como é, mas entender quem somos no mundo, afinal quem dará sentido a nossa existência são os que a dividem conosco. Talvez ele não soubesse, mas já havia mudado tantas vidas pela simples presença, ainda que se achasse desconectado de tal mundo. Ele ainda não havia percebido, mas não era sobre tocar uma ou outra pessoa, era sobre ser a pessoa certa para quem é tocado. Não era a sua ação que o definia, mas o seu efeito.

Talvez no trabalho ele passasse os dias esperando pelo próximo, fazendo sempre adiantado o que está atrasado em mundo que corre demais sem destino nenhum. Porém, no silêncio de observadores, ele era o que tornava colorido os dias mais cinzas. Com a perda de seus sentidos, percebeu quem era, mas não se atreveu a questionar quem era ele para os que o viam através de outros olhos.

Augusto não era apenas um trabalhador que perdeu os sentidos em uma sala qualquer, ele o irmão que ensinou a escrever ao pequeno, era o marido de quem sonhava alto e precisava de braços fortes para levantar a moral quando tudo parecia desmoronar, era o tio legal de quem ainda não sabia nada sobre o mundo. Quem sabe, e aqui não é uma suposição, ele fosse o padrinho que alguém precisava, e mais, desejava.

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Augusto começou a recobrar o sentido que mais lhe faltara, antes mesmo de todos os outros desaparecerem, o sentido da própria vida. Acho que ninguém é capaz de dizer qual o sentido da própria vida sem perguntar aos que convivem com ele. Qual a real diferença entre um animal e um homem que vive isolado em meio a mata fechada? No fim do dia, ele é apenas mais um animal que apenas sobrevive, que define a existência em apenas existir. Ele acorda, come, bebe, dorme, acorda, come, bebe, dorme, acorda... será mesmo que está acordado enquanto não está dormindo? Sem referenciais, sem planos, sem projetos, sem sonhos e, por que não, sem frustações, o que nos resta? O homem isolado talvez seja mais livre do que os que buscam sentido na própria existência, um algo a mais do que acordar, trabalhar e se preparar para o amanhã, mas de toda forma, que homem é esse que não vive em sociedade se não uma fera em seu sentido mais pleno?

Ele entendeu que, talvez, não fosse um discurso samaritano ou densamente altruísta o de que o sentido da nossa vida é o sentido que dão a nossa vida. Uma vez ele disse que seu amigo que era pai tinha sentido na vida por ser pai e isso facilitava. De certa forma ele estava certo, não era o simples fato de ser pai que dava o sentido de sua existência, mas a sua importância para os filhos. Ser pai é a relação com o outro. Augusto, como o melhor profissional da área era cobrado pelos números inventados para dar sentido a existência da empresa, mas quem a controlava esquecera que números são dados abstratos se não ligados a nomes, histórias e olhos que brilham cada vez menos pela sua numerificação. Augusto ainda acreditava nos olhos. Ele desejava, planejava e se preparava para o brilho dos olhos, nem que fossem o do espelho.

Augusto podia, enfim, sentir tudo a sua volta. Recuperou todos os sentidos, até mesmo o que não sabia que tinha perdido.

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