Alice acordou, naquela terça-feira, com uma leve sensação de enjoo. Não era gripe, nem má digestão. Era um vazio. Um eco novo, recente, ainda dolorido.
Na noite anterior, Pedro — com quem dividira cafés, planos e os domingos de chuva nos últimos três anos — dissera, com voz calma e fria:
— “Eu não te amo mais.”
Assim, sem vírgulas. Sem metáforas.
Alice apenas assentiu, como quem assina a entrega de uma encomenda que nunca pediu.
Na manhã seguinte, olhou-se no espelho e, pela primeira vez em dias, não pensou em alinhar as sobrancelhas nem esconder as olheiras.
Colocou uma camiseta surrada, daquelas que ninguém usaria na rua — e saiu para trabalhar.
No ônibus, sentou-se ao lado de um senhor de olhar sereno de todos os dias. Sempre no mesmo horário, no mesmo banco ao lado dela, sem nenhuma palavra. Ele lia um jornal amassado, pela forma como ele o transportava, com atenção devota. Alice, encurvada, pensava: “Será que ele nota que eu existo?” Mas ele apenas virou a página. Mais uma... mais uma.
Na padaria, a moça do caixa lhe deu um “bom dia” automático, sem olhar em seus olhos. Ela até tentou responder com sinceridade o “bom dia”, mas antes que pudesse, perdeu a “atenção” de sua interlocutora.
No trabalho, ninguém comentou o rosto inchado ou os passos arrastados.
E foi aí que, de repente, como num estalo, Alice percebeu o óbvio: ninguém estava prestando atenção.
E aquilo, estranhamente, foi libertador.
Não precisava fingir. Não precisava contar a ninguém que seu coração fora despejado de si mesmo na noite anterior.
Era só mais uma alma anônima no mundo.
E talvez isso fosse, de fato, uma bênção: ser insignificante no roteiro alheio.
Na volta para casa, já à noite, o mesmo senhor estava no banco do ônibus. O jornal agora descansava em seu colo. Alice, impulsiva, perguntou:
— O senhor gosta mesmo de ler jornal?
Ele sorriu, com os olhos moles de tempo:
— Gosto... É minha forma de me distrair da saudade da minha esposa. Ela partiu faz três meses. Desde então, passo os dias lendo manchetes de um mundo que segue em frente, mesmo sem ela.
Alice sentiu o peito apertar. Quis dizer: “Sinto muito.”
Quis contar que ela também acabara de perder alguém — ainda vivo, mas ausente. Quis comparar dores, como quem coleciona perdas.
Mas conteve-se. Lembrou-se de uma frase que lera num livro atribuído a Jung: “A empatia real não é sentir o que o outro sente — é reconhecer que ele vive algo que eu jamais poderei compreender por completo.”
Então, não tentou se colocar no lugar do velho. Respeitou. Ofereceu o que podia: um silêncio respeitoso, um olhar sem pressa, e um pequeno gesto.
— Quer sentar na janela hoje? O senhor sempre deixa para mim.
Ele agradeceu. E durante o trajeto, nenhum dos dois disse mais nada.
Alice apenas olhou pela janela e, entre os postes e faróis, sentiu algo que não era alívio, nem dor, mas talvez um embrião de compreensão. Que sim, ninguém está prestando tanta atenção assim. E que amar, perder e continuar andando são capítulos do mesmo livro que todos nós escrevemos com mãos trêmulas. E que, às vezes, no fundo da dor, ser invisível pode ser o começo da cura.
— “Lázaro”, ele disse na porta antes de descer. Ela sorriu. “Alice”.