Coisas, coisar, coisando

Da Redação ·
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A vida seguia, meio amarga, meio coisada
fonte: Ilustrativa/Gerada por IA
A vida seguia, meio amarga, meio coisada
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Ele acordava todo dia sentindo uma coisa. Não sabia se era fome, sede, saudade ou apenas preguiça. Chamava de coisa e pronto. Porque nomear dava trabalho, e trabalho era outra coisa que ele também não queria. Era coisar muitas coisas por coisa alguma.

Na mesa do café, olhava para a xícara com o pó preto. Café? Chá? Não lembrava de ter comprado nada. Era coisa, apenas. Tomava, engolia, fazia careta. A vida seguia, meio amarga, meio coisada.

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Quando alguém lhe perguntava como estava, respondia sem titubear: “Ah, tô naquela coisa, sabe?”. O outro, constrangido, fingia que sabia. E ali ficava provado que a vida é feita de cumplicidade nas nossas ignorâncias: ninguém entende nada, mas todo mundo finge entender qualquer coisa.

Havia dias em que a tristeza batia à porta, mas ele nem abria. Dizia que estava ocupado com outra coisa. Quando a alegria aparecia, também não reconhecia: chamava pelo mesmo nome, confundia, misturava. No fim, sentimentos eram tudo coisa — um amontoado de sensações sem manual de instruções.

O problema é que viver assim coisado tinha um preço. O coração, por exemplo, já não batia no ritmo do amor, da raiva ou da esperança. Batia no ritmo de coisa. E isso era perigoso, porque um coração coisado pode parar sem dar aviso, pode explodir sem motivo, pode apenas virar silêncio no meio da madrugada.

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E, no entanto, havia algo de libertador nisso: se tudo é coisa, nada precisa ser explicado. Não é preciso justificar por que se chora no ônibus ou ri no enterro. É apenas coisa. Como o nó na garganta, como a vergonha de errar o nome da pessoa amada, como o riso solto quando não se pode rir.

No fundo, ele sabia que chamar o mundo de coisa era uma forma de sobreviver ao peso das palavras. Porque as palavras dão nome, e dar nome dá existência, e existir dói. Melhor deixar tudo no limbo confortável do indizível. Melhor coisar.

Mas, às vezes, deitado antes de dormir, no silêncio que nem o celular disfarçava, ele pensava: e se a vida também for só isso? Uma coisa que começa, outra coisa que termina, e no meio a gente tropeça em milhares de coisas, chamando de destino, amor, fracasso, glória, mas que no fundo são apenas... coisas? Ele tentava se convencer de que estava tudo bem, que chamar assim era apenas um jeito de aliviar. Mas a insônia soprava ao pé do ouvido: “Você não nomeia porque tem medo. Medo de se reconhecer ridículo, pequeno, humano. Medo de admitir que sente. E, no fundo, medo de viver”.

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Então virava pro lado, ajeitava o travesseiro e suspirava. O sono vinha, coisado também. E a vida seguia, tropeçando entre nomear e esquecer, entre rir e chorar, entre coisa e coisar.

Outro dia, outra coisa, sempre acontece alguma coisa, mas são coisas demais para perceber qual é a coisa certa e, na dúvida, vai coisando as coisas, uma coisa de cada vez, sentindo uma coisa estranha, mas que o faz, ao menos por um instante, não se sentir só uma coisa. Coisas não sentem.

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