Precisamos falar sobre Setembro Amarelo pelos olhos de um daltônico

Da Redação ·
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A cada manhã, a mesma montanha, a mesma pedra, o mesmo destino
fonte: Ilustrativa
A cada manhã, a mesma montanha, a mesma pedra, o mesmo destino
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É setembro. Os calendários se pintam de amarelo, multiplicam-se as campanhas, os abraços virtuais, os discursos cuidadosamente elaborados sobre empatia e cuidado. Mas quem carrega a própria pedra sabe: o mundo pode estar inteiro coberto de laços dourados, que o peso não diminui um grama sequer.

Sísifo continua condenado. A cada manhã, a mesma montanha, a mesma pedra, o mesmo destino. O suor que escorre não interessa, a dor nos braços não importa, e o recomeço constante é tratado como se fosse uma escolha. Quando a pedra rola encosta abaixo, não há quem desça para ajudar. A responsabilidade é sempre de quem empurra. A culpa também.

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E, no entanto, todos parecem tão comovidos em setembro. Postam frases de incentivo, ensaiam palestras, distribuem cartilhas. Há empresas que pintam seus logos de amarelo, políticos que discursam sobre prevenção, escolas que colam cartazes nos murais. Mas, quando a encosta cobra de verdade, estão ausentes. Fingem interesse, mas perderam a capacidade de se comover. Usam a dor como vitrine: falam de autistas, mas se recusam a acolher suas inseguranças; dizem às pessoas para não desistirem, mas seguem dando diariamente motivos para que o façam; transformam em propaganda aquilo que deveria ser silêncio e cuidado.

É fácil defender uma causa quando ela gera likes, votos ou clientes. É confortável exibir-se como guardião de uma luta invisível — desde que se colham os louros e não se precise sujar as mãos. Mas quando a pedra despenca e esmaga ossos, quando Sísifo não sabe mais por que insiste em lutar num mundo que o quer morto por não se encaixar, não há testemunha, não há plateia, não há apoio. Restam apenas as pedras e os ossos quebrados.

Ignoram também as mães que, diariamente, atravessam a cidade para levar seus filhos às terapias. Não para curá-los — porque não são doentes —, mas para que esse mundo cruel, ao menos, os aceite um pouco mais. Essas mães não aparecem em campanhas, não são estampadas em outdoors, não viram capa de revista. Seguem invisíveis, sustentando pedras que não escolheram carregar, mas que carregam mesmo assim.

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E a montanha de Sísifo não é solitária. Do outro lado, Prometeu cumpre sua sentença, acorrentado, sem ao menos a chance de mover-se, exposto ao suplício sem fim. E o mundo inteiro repousa nas costas de Atlas, que sustenta os céus sem jamais poder descansar. Entre pedras, correntes e colunas de dor, há sempre quem transforme sofrimento em espetáculo — quem lucre com a dor do outro, quem venda discursos e imagens de bondade enquanto multiplica as desigualdades. Ninguém deveria lutar tanto para ser aceito em um mundo que já nasceu torto, onde poucos flutuam porque muitos se arrastam.

Vivemos em um mundo que gosta de se enganar. Repetimos frases de efeito sobre resiliência, como se resistir ao absurdo fosse virtude, não punição. Aplaudimos quem sorri enquanto sangra, como se esse fosse o modelo do humano perfeito: forte, belo, constante, vitorioso. A verdade, no entanto, é mais amarga: é um teatro em que todos fingem não ter pedras, mas carregam as suas em segredo. A diferença não está em quem as tem, mas em quem consegue disfarçar melhor.

Talvez Rousseau tivesse razão ao dizer que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Pois não é raro que o peso que carregamos venha das mãos que nos cercam: julgamentos, desprezos, exigências, comparações, pequenas crueldades diárias que tornam a subida mais íngreme. Ainda assim, ninguém dirá que o problema está na crueldade do mundo — apontarão sempre para o indivíduo que tropeça, como se o fardo fosse apenas dele, como se fosse fraco demais para suportar aquilo que todos supostamente suportam.

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O absurdo de Camus se faz presente: empurramos sem sentido, lutamos sem horizonte, recomeçamos sem recompensa. E setembro, com seu brilho artificial, não muda a condição da pedra. A cor amarela não alivia o peso do cinza.

E, no entanto, há algo nessa condenação que resiste. Não porque exista grandeza no sofrimento, nem porque haja lição na dor — mas porque, apesar de tudo, há quem continue. Frágeis, cansados, sem garantias, ainda assim empurram. E talvez seja justamente aí que se revele uma força paradoxal: não a dos que fingem constância, mas a dos que se admitem quebrados e, mesmo assim, não largam a pedra.

Não há triunfo. Há apenas o movimento.

E se há esperança, é mínima e contraditória: não porque redima o absurdo, mas porque, em um mundo que lucra com a queda, quem insiste em levantar merece ser lembrado.

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