O cheiro dos homens da minha família

Da Redação ·
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fonte: IA
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Quando eu era pequeno, meu pai tinha um cheiro que não morava em frascos. Era mistura de suor limpo, café fresco e o ferro das ferramentas que ele guardava no fundo do quintal. Às vezes, vinha com um toque de chuva na roupa, e eu sabia que ele chegava antes mesmo de vê-lo na porta. Esse cheiro, para mim, era segurança. Era o anúncio silencioso de que tudo estava no lugar. Quando ele chegava com seu caminhão de mais uma longa viagem, era o cheiro da lona de freio que mostrava o cuidado na estrada para chegar bem até em casa. Suas camisetas surradas, em pacotes imensos a serem lavadas, tinham o cheiro de saudade e da coragem da luta por cada membro de seu pequeno grande castelo.

Nos domingos que estava em casa, havia também um leve aroma de fumaça, de carvão queimando devagar, e um tempero que se infiltrava na camisa — perfume de casa cheia, de histórias que se repetem sem perder a graça. Macarrão, frango assado e maionese era o banquete dos aromas que até quando sentidos me fazem ter 8 anos. Hoje meu pai tem cheiro de avô.

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Já o meu avô eu não conheci. Ele partiu quando meu pai tinha apenas 13 anos. Mas, de algum modo, eu sei como ele cheirava. Sinto seu perfume na forma como meu pai, ainda menino, carregou nas costas o cuidado da casa e a responsabilidade pela família. Era o mais novo dos irmãos, mas foi ele quem herdou o cheiro. Um aroma de maturidade precoce, de mãos que aprenderam cedo demais a segurar o peso do mundo.

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Meu avô vive em mim através do cheiro que deixou no filho — uma mistura de esforço diário, dignidade e silêncio. Assim como os primeiros cheiros do meu pai, ele cheirava o campo, as colheitas em fazendas que não eram suas, mas era através desse trabalho que plantaram o que somos hoje.

Antes dele, houve meu bisavô. Um italiano que atravessou o oceano em busca de melhores dias. Nunca senti seu cheiro, mas posso imaginá-lo: sal do mar grudado na pele, suor de medo e esperança, a aspereza da terra recém-chegada, o pão assado para lembrar-se de casa. É o cheiro da coragem que se deixa como herança. Esse perfume antigo — mesmo sem jamais ter tocado meus sentidos — ainda pulsa no meu sangue e coração. O orgulho não é pela ancestralidade europeia, mas pela hombridade de assumir para si a responsabilidade de manter vivo o nome da família em meio a fome e o caos que assombrava sua terra, buscando um novo ninho para os que viriam. Deixou junto com cheiro uma riqueza que nenhum dinheiro poderia comprar.

O tempo passou, e um dia percebi que o cheiro do meu pai mudou. Não só cheiro dele, mas principalmente o meu. Sem perceber, comecei a carregar no corpo um aroma de responsabilidade. Mistura de papel e correria, de noites curtas, de um perfume escolhido para que meus filhos me associassem a algo bom — tal como eu associava o cheiro do meu pai à paz. Quando senti pela primeira vez o cheiro dos meus filhos, pude entender o peso do cheiro do meu pai. Não há banho ou perfume caro que possa tirar do corpo o cheiro específico de quem escolheu ser pai, não apenas o genitor de seus filhos. Esse último fede como algo podre, pois é assim que fica a alma de quem perde a honra e a dádiva de respirar através de um pulmão que não é o seu. Isso não é sobre os que não querem gerar filhos, é sobre os que geraram e escolheram não ter.

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Hoje, quando abraço meu filho, sinto que ele me cheira com a mesma atenção silenciosa que eu tinha aos cinco anos. E sei que está guardando isso sem se dar conta. Tenho tentado ser o melhor perfume que ele possa sentir em sua vida. Junto com suas irmãs, serão eles que lembrarão de mim através do cheiro quando for apenas isso... um cheiro.

Talvez, e assim rogo a Deus, um dia ele também se torne pai. Terá seu próprio cheiro — único, mas com vestígios de todos nós. Seus filhos vão carregar um pouco dele, e seus netos, um pouco meu. Guardo em mim todos os cheiros que vieram de longe e antes deles, como o vento que vem do Sul trazendo as nuvens de chuva que regam as plantações que ficaram para trás em minha família, mas ainda moldam o formato dos dedos exprimidos nas pontas pela genética.

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E, quem sabe, meus bisnetos, que talvez eu nunca conheça, ainda sintam, sem saber de onde vem, um perfume antigo que começou muito antes de mim.

Porque família é esse aroma que atravessa o tempo.

Não se guarda em vidro, não se perde no vento. Apenas muda de corpo, mas continua sendo o mesmo.

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Ser pai é carregar, ao mesmo tempo, a coroa e a armadura.

É viver a glória silenciosa de ser chamado, de ser procurado, de ser refúgio. Mas também é a responsabilidade imensa de nunca poder abandonar o posto, mesmo nos dias em que o mundo pesa mais do que os braços suportam. É estar presente nos instantes visíveis e invisíveis, e deixar marcas que nem sempre se medem em palavras — mas que, no fim, são sentidas como um cheiro que permanece.

E, neste caminho, não podemos esquecer das mães que, quando a ausência se fez covardia ou tragédia, vestiram o manto da paternidade com a força de quem não sabe desistir. A elas, todo respeito e reverência. Pois a essência de um pai verdadeiro não está no gênero, mas na entrega.

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Aos que perderam o pai cedo demais, fica o aroma da saudade. Um cheiro que não se renova, mas nunca se apaga. Vive nas lembranças, nas fotos, nas histórias contadas em jantares e festas de família, e no silêncio em que o coração busca, no ar, aquilo que já não está. É ausência que perfuma a memória para sempre.

Ser pai é saber que um dia o corpo se vai, mas o cheiro fica.

É compreender que, enquanto houver um filho que, ao fechar os olhos, possa lembrar de como era estar no seu abraço, você não terá desaparecido de verdade. E que esse é o maior legado: ser lembrado não apenas pelo que fez, mas por quem foi, no mais íntimo e simples ato de existir.

Neste Dia dos Pais, honro cada homem que, antes de mim, carregou o cheiro da paternidade e luto para que eu seja ao menos um frasquinho do perfume mais caro que não se vende por aí. Neste domingo, Dia dos Pais, eu tenho a honra e a glória de abraçar o meu pai, firme e forte em sua jornada. Meu pai também abraçará meu filho, que carrega o nome de meu avô, Vicente, que de alguma forma, permitirá que o filho abrace também o pai mais uma vez. Essa é a beleza do cheiro da família, ele muda de corpo, mas permanece. Então aos que vieram antes de mim partindo do meu pai, a minha saudação: Oclaricio Bomba, Vicente Bomba, Camillo Bomba, Tommaso Bomba, Donato Antonio Bomba, Giuseppe Bomba e Giosafatto Bomba, o último documentado pelos registros, meu hexavô falecido em 1804. E só falei dos que carregaram o nome Bomba, pois eu sou a soma de tantos outros cheiros que não caberiam em uma só folha.

Que Deus, que é também o nosso Pai, o primeiro e maior de todos, espalhe o seu cheiro abençoando todos os pais neste dia tão especial.

E, por fim, deixo a pergunta: qual é o cheiro que você lembra e qual vai deixar?

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