Acordei com a nitidez amarga de não fazer falta. Há dias assim — ou talvez sejam todos. Em que a alma acorda antes do corpo, e o corpo, quando vem, já chega cansado.
Sentei-me à beira da cama e esperei algo. Não sei o quê. Talvez um barulho qualquer que dissesse que o mundo me esperava. Nada. A casa era surda.
Levantei.
Fiz café — sem vontade, sem gosto. Era um gesto apenas. Bebi-me nele.
No espelho, um homem. Parecia comigo. Mas estava mais pálido. Um pouco mais ausente. Era um tio, quem antes foi um jovem, uma criança, um nada, voltava a sê-lo.
Pensei: se eu morresse hoje, quanto tempo levaria para alguém dar por falta do meu silêncio?
Sair foi um capricho de sobrevivência. Às vezes, ir até a calçada é tudo que me impede de cair dentro de mim.
No corredor, a vizinha do 203 abriu a porta. Disse:
— Seu Miguel, aquele pão com orégano... ficou igualzinho ao seu. As crianças pedem “o pão do Seu Miguel”.
Sorri. Por fora. Por dentro, só observei: até o pão que fiz um dia continua mais presente que eu.
Na rua, o jornaleiro me gritou:
— A piada do elefante e do carteiro... minha mulher chora de rir! Disse que só o senhor pra lembrar essas coisas.
Sorri de novo. Meus risos moram nos outros?
Um rapaz parou no ponto. Parecia aflito, mas firme.
— O senhor me disse uma vez: “ninguém começa grande, mas começa”.
— Disse? — perguntei, ou pensei que perguntei.
— Aquilo me salvou. Hoje, estou indo pra faculdade. Obrigado, viu?
Assenti. Senti. Não sei.
Voltei andando devagar. Sentei num banco qualquer. O sol me atravessava sem perceber.
Pensei: há pessoas que passam por mim e me notam mais do que aqueles que dizem me amar.
Há gestos que fiz sem querer que se tornaram monumentos invisíveis na memória de alguém.
Não chorei. Já não tenho esse hábito. Chorar é para quem ainda espera consolo.
Mas entendi, naquele banco, que talvez não seja a vida que nos esquece.
Somos nós que nos deslembramos de existir.
E no entanto...
Alguém come um pão e pensa em mim.
Alguém ri de uma piada que não me pertence mais.
Alguém acredita porque um dia, sem querer, eu disse algo.
E isso... isso não salva. Mas sustenta.
Como quem caminha na beira do abismo, sabendo que há pedras no caminho que ele mesmo colocou — sem saber — para outros passarem.