O perigoso hábito de ler gente em terra de analfabetos emocionais

Da Redação ·
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Não era bondade; era um teatro psicológico
fonte: Pixabay
Não era bondade; era um teatro psicológico
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Mauro já não se impressionava com as palavras. Com o tempo, percebeu que a voz humana é mestre em disfarces — um instrumento afinado para tocar a melodia que a plateia quer ouvir. Aprendera que as pessoas carregam, na superfície, a máscara polida daquilo que gostariam de ser, enquanto o que realmente são permanece trancado nos porões da consciência.

Naquela manhã, ao esperar seu café, assistiu ao espetáculo de sempre: o dono de uma loja, terno impecável, falava com sua funcionária como quem esmaga um inseto invisível. Olhos estreitos, frases que cortavam como vidro. Mais tarde, o viu na calçada, entregando uma moeda a um homem em situação de rua, com um sorriso pronto para a foto. A imagem ganharia filtros, uma legenda inspiradora e, claro, aprovação pública.

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Mauro conhecia bem aquele roteiro. Freud chamaria de “formação reativa”: atacar de um lado e, para aliviar a culpa inconsciente, exibir o oposto em praça pública. Não era bondade; era um teatro psicológico para que a consciência não entrasse em greve. É como aquele “amigo” que te humilha, desmotiva, te quebra... e um minuto depois, te chama para o café, como se nada tivesse acontecido, esperando o seu melhor sorriso.

Outro caso clássico: o motorista que, ao ser fechado no trânsito, desejava que o outro “morresse logo”, mas que exibia um versículo bíblico na bio do Instagram. Contradição? Sim. Mas, na lógica freudiana, tratava-se de projeção — despejar no mundo externo o ódio que não se admite carregar por dentro. Ao mesmo tempo, a citação religiosa funcionava como um amuleto moral, um lembrete para si mesmo de uma pureza que já não sabia se possuía.

E havia também o amigo de infância, que falava sobre empatia como quem vende um produto de luxo. Gostava de dizer que “o mundo precisa de mais compaixão”, mas abandonava qualquer laço que não lhe rendesse benefício. Freud talvez interpretasse como “narcisismo das pequenas diferenças”: a habilidade de mascarar o egoísmo sob um verniz socialmente aceitável, acreditando piamente na própria farsa. “Você não é mais meu amigo”, fácil assim?

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Mauro entendia que “ler” as pessoas era decifrar esse código subterrâneo. Era observar o brilho falso no sorriso, o abraço que tem mais cálculo do que afeto, a pausa antes do “pode contar comigo” que revela um contrato condicional invisível. E, ao compreender esses gestos, aprendeu a se preservar. Não por rancor, mas por higiene emocional.

Ele sabia que sobreviver nesse mundo cão não é viver armado, mas aprender a reconhecer quando a bondade é só performance, quando a fé é marketing, quando a caridade é um ensaio para fotografia. E, no fundo, entendia algo que Freud também diria: ninguém é totalmente vilão ou santo — todos travam uma guerra secreta entre o que desejam e o que ousam mostrar. Mauro nunca deveria ter lido aqueles livros. É muito perigoso, pois já se tornava impossível apenas olhar, toda hora ele enxergava e via o que os olhos eram incapazes e o coração não deveria/queria saber. Uma luta contra o luto.

Naquele dia, ao terminar o café, Mauro pensou que o maior ato de sanidade é não se deixar seduzir pela superfície. Porque, no fim, não é difícil encontrar quem cite a Bíblia; difícil é encontrar quem a viva quando o sinal fecha. E quem lê gente sabe: as palavras contam uma história, mas é o silêncio que revela o enredo real.

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