Era uma sexta-feira comum. Abril ainda com cheiro de outono e um sol preguiçoso pendurado no céu. As crianças iam à escola, os boletos venciam, e nas redes sociais ainda ecoavam os debates mornos sobre a morte do Papa Francisco.
Alguns disseram “já foi tarde”.
Alguns choravam. Outros riram.
Chamaram-no de comunista, de traidor da tradição, de populista de batina.
Não houve luto, só memes. A internet se dividia entre os que o condenavam ao inferno e os que o defendiam, mostrando exemplos de suas falas e ações. Alguém ousou dizer que ele seguia os ensinamentos de Jesus, outro disse que Ele nunca aprovaria esses comportamentos. A verdade só surgiria se de fato Ele voltasse e respondesse por Si. Era o que muitos pediam.
Naquela mesma manhã, Ele voltou. Jesus enfim, voltou. Não por causa do Papa, mas porque já era hora.
Não havia anúncio. Nem anjo, nem apoteose. Apenas apareceu — na esquina da padaria, entre um rapaz em situação de rua e uma senhora que falava sozinha. Usava roupas simples, os pés empoeirados, e um olhar doce demais para esse tempo tão duro.
Começou a andar. Tocava os que estavam esquecidos. Abençoava os que ninguém abençoa. Oferecia escuta, pão e silêncio.
E, claro, começaram a filmar.
As manchetes vieram rápido:
“Suposto Jesus provoca aglomeração em abrigo de usuários de drogas.”
“Homem que se diz Cristo critica desigualdade e vira alvo da internet.”
“Nova seita ou ameaça ideológica? Especialistas comentam.”
O barulho aumentava, e com ele, o incômodo.
Ele não falava sobre riqueza. Não prometia sucesso.
Falava de entrega, de compaixão, de perdão.
Insistia em dizer que o Reino não era para os fortes, mas para os pequenos.
Pelo jeito, bastava acreditar nele, ter fé e seguir Seus ensinamentos para ser salvo. Seus ensinamentos? “Amar a Deus sobre todas as coisas e a seu próximo como a ti mesmo”. Tanta gente esqueceu o básico que isso parecia ousadia demais em nosso tempo.
Logo, começaram os comentários:
“Esse cara é muito progressista pra ser Jesus.”
“Cristão que é cristão não se envolve com esses tipos.”
“Tem algo errado aí. Esse amor todo parece militância.”
Diziam que Ele era perigoso, que dividia as famílias, que atacava valores. A fé virou filtro — e Ele não passava nos testes doutrinários das redes sociais. Denunciaram-no. Hostilizaram-no. Um vereador sugeriu uma moção de repúdio. Um pastor, em sua live, disse que aquilo era obra do diabo disfarçado de cordeiro. Um padre nem se deu ao trabalho de abrir a porta.
Não houve cruz. Mas montaram o palanque.
Ergueram o discurso. Afiaram os algoritmos.
Fizeram reuniões discretas.
Um grupo no WhatsApp chamava-se “Pela Ordem e Tradição”. Outros planejavam um ato em nome da “fé verdadeira”.
Não seria difícil. Já tinham o martelo, a madeira, a narrativa.
Só não tinham os olhos para reconhecê-Lo.
Ele não reagiu. Caminhava com serenidade. Sabia o que viria. Sempre soube. Repetíamos a história com uma eficiência quase bíblica: condenávamos o Amor por não caber nas nossas caixinhas morais.
A crucificação já estava em andamento.
Faltava apenas o momento certo.
Um escândalo qualquer. Uma distorção suficiente.
E então, mais uma vez, mataríamos Deus com as mãos limpas — protegidos por câmeras, contratos e convicções.
Talvez Ele não morresse desta vez.
Talvez apenas fosse embora.
Mas a vergonha…
A vergonha ficaria.
Ficaria nos olhos da criança que Ele acolheu e que agora volta a dormir sob marquises, abraçada apenas pelo frio.
Ficaria no som dos sinos que tocam para templos cada vez mais altos, mas de portas trancadas.
Ficaria nos corações que decoram versículos, mas esquecem os gestos.
Ficaria no altar, onde a cruz virou enfeite e o sangue foi substituído por slogans.
Ficaria nos discursos inflamados, que O usam como escudo, mas jamais como espelho.
Ficaria nos olhos da mulher ignorada, do jovem julgado, do velho abandonado.
Ficaria na ausência do abraço, no cancelamento apressado, na compaixão adiada.
Ficaria no eco das preces que nunca saíram da boca para as mãos.
E a resposta talvez nem precise ser dita.
Basta olhar em volta.
As praças continuam cheias de solidão.
As mesas continuam fartas de medo e vazias de partilha.
As redes continuam barulhentas, mas ninguém se escuta.
Basta olhar.
E perceber que, mesmo diante do Amor encarnado, preferimos a lógica do castigo.
Ele veio.
Mas talvez não tenha sido bem-vindo.
Talvez, no fundo, o problema nunca tenha sido se Ele voltaria.
Mas se seríamos capazes de reconhecê-Lo — agora que Ele caminha sem auréola, sem palco, sem poder.
Que vergonha Jesus, que vergonha.
Mateus 7:21-23.