As máscaras de Miguel e o mundo silencioso

Da Redação ·
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Símbolo do autismo
fonte: Pixabay
Símbolo do autismo
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Desde pequeno, Miguel sentia que o mundo era um lugar estranho, como um mecanismo complexo cujas engrenagens giravam em harmonia para todos, menos para ele. As pessoas falavam em um idioma silencioso, um código invisível que ele não conseguia decifrar. Os sons pareciam crescer e se multiplicar, formando uma orquestra desafinada dentro de sua cabeça. Ele só falou aos 6 anos, ainda que tivesse muito a dizer.

Para sua mãe, Miguel era um menino calado, introspectivo, que parecia sempre imerso em um mundo só dele. "Ele só precisa de tempo", dizia para si mesma, observando o filho alheio às brincadeiras das outras crianças. O pai tentava levá-lo ao futebol, mas Miguel fugia do barulho das arquibancadas, das vozes exaltadas, do apito estridente do juiz. "Ele não gosta de esportes, só isso", o pai concluía, sem perceber o quanto aqueles sons eram avassaladores para o menino.

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Os professores viam Miguel como distraído. "Ele tem potencial, mas precisa se esforçar mais", comentavam nas reuniões escolares. Os colegas o viam como estranho. "Ele nunca responde direito, nunca olha nos olhos", diziam. Miguel ouvia tudo, mas não sabia como mudar. Como explicar que as palavras se embaralhavam antes mesmo de saírem de sua boca? Como dizer que, para ele, o contato visual era como encarar um sol ofuscante?

Os recreios na escola eram como labirintos sem saída. O pátio fervilhava de movimentos caóticos, vozes cruzavam o ar como raios imprevisíveis, e Miguel se sentia um náufrago tentando sobreviver a um mar revolto. Ele observava as crianças rindo e conversando com uma fluidez impossível para ele. Quando tentava participar, era como se estivesse lendo um roteiro borrado e entrasse sempre na cena errada. E, com o tempo, ele parou de tentar.

Na adolescência, a necessidade de se adaptar ficou mais cruel. Miguel percebeu que precisava vestir uma máscara. Aprendeu a copiar gestos, a imitar sorrisos, a rir quando os outros riam, mesmo quando não entendia a piada. Mas atuar o tempo todo era exaustivo. "Ele está ficando mais sociável", pensavam os pais, sem notar o cansaço que Miguel carregava nos ombros. Ao chegar em casa, sentava-se no escuro, ouvindo apenas a própria respiração, tentando recuperar as forças para mais um dia interpretando um papel que não era seu.

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Por muito tempo, Miguel achou que o problema era com ele. Que era um defeito de fabricação, uma peça fora do lugar tentando encontrar seu encaixe em um cenário desconhecido. Até que um dia, já no final da adolescência, alguém olhou para ele com gentileza e disse palavras que, ao mesmo tempo, o libertaram e o assustaram: "Você é autista".

De repente, os fios soltos começaram a formar um desenho compreensível. Ele não era falho, nem quebrado, nem menos capaz. Apenas tinha uma forma diferente de existir no mundo. E isso não o tornava menos humano, apenas único.

A aceitação veio aos poucos. Os pais aprenderam a enxergar Miguel por quem ele era, e não pelo que esperavam que fosse. Os professores entenderam que ele não era distraído, apenas processava o mundo de outra maneira. Os amigos passaram a respeitar seus silêncios, suas pausas, seus momentos de recolhimento. Ele finalmente poderia ser quem era, não quem todos esperavam, começou a perceber que talvez não precisasse se moldar a estruturas rígidas. Talvez pudesse construir suas próprias rotas, seus próprios espaços. O mundo ainda era grande, barulhento e veloz, mas também tinha seus silêncios. Pela primeira vez, ele entendeu que não precisava mudar para se encaixar, precisava encontrar aqueles que valorizavam sua maneira singular de ver o mundo.

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Cada pessoa tem um lugar onde pertence. E o dele existia, só precisava ser encontrado. E agora, Miguel sabia que não estava sozinho nessa busca.

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