A primeira vez que ouvi alguém falar, com preocupação, sobre os impactos do crescimento econômico chinês foi em 1998, quando entrevistei o diretor de uma empresa do setor alimentício para uma pesquisa acadêmica. Ele tinha acabado de voltar de visitas técnicas à China. Em tom quase alarmante, contou que o chinês médio vivia basicamente de macarrão e arroz. E deixou um alerta que, na época, me preocupou: “No dia em que cada chinês colocar um pedacinho de carne no prato, o mundo inteiro vai sentir”. Ele não estava falando só de alimentação, mas de uma mudança profunda e silenciosa na economia global que já começava a se desenhar.
Dias atrás, conversando com um empresário, entendi que aquela antiga previsão já havia se concretizado. Perguntei onde ele comprava os produtos que vendia e a resposta veio sem rodeios: importava tudo da China. Intrigado, quis saber se ao menos adquiria os itens a granel para depois fracionar e embalar aqui. Ele riu e respondeu com naturalidade: “Não compensa. Eles já mandam tudo pronto, embalado com a minha marca. Eu só recebo e distribuo”.
Esses dois episódios ajudam a entender por que os Estados Unidos veem o avanço econômico chinês com tanta inquietação. De um lado, está um país com mais de um bilhão de pessoas que, ao melhorar sua renda, passa a pressionar os preços mundiais de alimentos. De outro, uma potência industrial capaz de produzir, embalar e entregar praticamente tudo a custos tão baixos que sufocam indústrias inteiras ao redor do planeta. O resultado é visível: muitas economias, inclusive a brasileira, vêm abrindo mão de sua estrutura produtiva e se apoiando cada vez mais no comércio e nos serviços.
Renunciar à indústria é arriscar o futuro do desenvolvimento. Não por acaso, o governo brasileiro lançou o programa Nova Indústria Brasileira, reconhecendo que sem uma base manufatureira forte não há crescimento sustentável. Mas isso nos obriga a encarar uma pergunta incômoda: por que nossa indústria se tornou tão menos competitiva do que a chinesa? As respostas incluem custos elevados, infraestrutura problemática, burocracia e baixa produtividade.
O segundo ponto de alerta é mais discreto, mas não menos preocupante. Hoje, os chineses consomem cerca de 60 quilos de carne por pessoa ao ano, bem menos que os 130 dos norte-americanos, os 115 dos argentinos ou os 100 dos brasileiros. Porém, o que realmente importa não é o número em si, e sim a velocidade da mudança. Em apenas 25 anos, o consumo de carne bovina e de frango na China praticamente dobrou. E quando um país desse tamanho aumenta sua demanda, o efeito é imediato: os preços sobem no mundo todo. É uma pressão inflacionária silenciosa, já perceptível nas prateleiras do supermercado.
David Ricardo já nos alertava no século XIX que nenhum país deve depender demais de um único parceiro ou produto. Isso deteriora as relações de troca e compromete a capacidade de desenvolvimento. Produzir “um pouco de tudo” não é protecionismo, é sensatez econômica.
A verdade que muitos evitam enxergar é direta: depender demais da China, seja para comprar produtos, seja para vender alimentos, tem um preço cada vez maior. Sem uma indústria forte, o Brasil vira apenas um repassador de mercadorias feitas lá fora. E, sem acompanhar o avanço do consumo chinês, continuaremos sentindo no carrinho da feira o efeito dos alimentos mais caros. Gestores públicos precisam agir com planejamento e visão de futuro, fortalecendo a indústria nacional. Caso contrário, seguiremos presos a uma dependência que já pesa no cotidiano, sobretudo no bolso dos trabalhadores.