A Páscoa é tempo de renovação, reflexão e reencontros. Um período que, inevitavelmente, nos convida a pensar nos vínculos que cultivamos — sobretudo, os familiares. E quando falamos em família, não nos referimos apenas aos laços de sangue. Cada vez mais, o Direito tem reconhecido que o afeto é, por si só, capaz de constituir relações familiares legítimas.
A Constituição Federal de 1988 foi um marco importante na ampliação do conceito de família ao romper com o modelo tradicional baseado apenas no casamento formal. O artigo 226, §4º, por exemplo, reconhece a união estável como entidade familiar, e a jurisprudência foi além, reconhecendo outras formas de convivência e afeto.
Nesse contexto, surge a filiação socioafetiva, que se estabelece quando uma pessoa assume, de forma voluntária e contínua, o papel de pai ou mãe, criando e educando uma criança como se fosse seu próprio filho, mesmo sem vínculo biológico. Essa realidade é muito comum atualmente, onde padrastos, madrastas ou avós ocupam esse lugar com afeto e responsabilidade.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 898.060, com repercussão geral (Tema 622), reconheceu a possibilidade da coexistência entre filiação biológica e socioafetiva, autorizando o reconhecimento da multiparentalidade. A decisão reforça que, para o Direito, o que importa é o melhor interesse da criança, que pode e deve ter reconhecidos todos aqueles que exercem, de forma efetiva, o papel de mãe ou pai.
A filiação socioafetiva pode ser reconhecida judicialmente ou por meio de escritura pública lavrada em cartório (nos termos do Provimento nº 149/2023 do CNJ), desde que haja o consentimento da criança ou adolescente e comprovada a afetividade entre eles. Esse reconhecimento gera todos os efeitos jurídicos da filiação: direito à herança, alimentos, sobrenome, etc.
Ao longo dos últimos anos, o afeto passou a ser considerado um verdadeiro valor jurídico. Ainda que o Código Civil não o traga expressamente como critério normativo, ele tem sido invocado pela doutrina e pela jurisprudência como base para decisões que envolvem guarda, convivência, alimentos e até mesmo responsabilidade civil por abandono afetivo.
O afeto constitui em verdadeiro elemento formador da família contemporânea. E não é por acaso que hoje se fala também em responsabilidade civil por abandono afetivo, quando um dos pais se omite de forma injustificada da vida do filho, negando cuidado, presença e vínculo.
A Páscoa, com sua simbologia de renascimento e união, é um convite a enxergar a família com o olhar da afetividade. O Direito de Família caminha — ainda que lentamente — para compreender que o amor, o cuidado e a presença diária são, muitas vezes, mais fortes que qualquer vínculo genético.
Mais do que uma norma fria, o Direito deve ser instrumento de justiça, sensível às transformações da sociedade. E reconhecer o afeto como pilar da família é, sem dúvida, um passo importante nessa direção.
Encerro a coluna dessa semana desejando que a celebração da Páscoa traga renovação, harmonia e esperança a todos os leitores.